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domingo, 14 de dezembro de 2014

FanFic - "Se eu ficar" - Capítulo 1

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Esta fic não será com Personagens do Amor Doce, então aqui está o primeiro capítulo!

Toda manhã eu acordo e digo a mim mesmo: É apenas um
dia, um período de vinte e quatro horas para passar. Não
sei quando exatamente eu comecei a me dar esse
autoestímulo diário — ou por quê. Parece um mantra dos
doze passos, e eu não me ligo em nada desses Sei Lá o Quê
Anônimos, apesar de que, ao ler parte das bobagens que eles
escrevem sobre mim, alguém poderia pensar que eu deveria
ligar. Muita gente venderia um rim só para poder
experimentar um pouquinho do tipo de vida que tenho. Ainda
assim, sinto necessidade de me lembrar da temporalidade de
um dia, me assegurar de que passei pelo dia de ontem, que
vou passar pelo dia de hoje.
Esta manhã, depois do meu cutucão diário, olhei para o
relógio digital minimalista no criado-mudo do hotel. São
onze e quarenta e sete, com certeza quase madrugada para
mim. Mas a recepção já fez duas ligações para me acordar,
seguidas de uma educada mas firme chamada de nosso
empresário, Aldous. Hoje pode ser apenas um dia, mas está
lotado de coisas.
Tenho estúdio marcado para fazer os acertos finais de
guitarra da versão exclusiva para a internet do primeiro
single do nosso recém-lançado CD. Que truque! Mesma
música, novas guitarras, alguns efeitos no vocal, pague uma
graninha extra por isso. “Nos dias de hoje você precisa fazer
cada moeda render um dólar”, os chefões da gravadora
adoram nos lembrar disso.
Depois do estúdio, tenho uma entrevista durante o almoço
com uma repórter da Shuffle. Esses dois compromissos são
meio que as bases do que se tornou minha vida: fazer
música, o que eu gosto, e falar sobre música, o que eu
abomino. No entanto, são os dois lados da mesma moeda.
Quando Aldous liga pela segunda vez, eu finalmente empurro
o edredom para longe e pego o frasco da mesinha. É um
troço prescrito para ansiedade que preciso tomar quando
fico agitado.
Agitado é como eu me sinto normalmente. Eu me
acostumei a ficar agitado. Mas, desde que começamos nossa
turnê com três shows no Madison Square Garden, tenho me
sentido outra pessoa. Como se estivesse prestes a ser sugado
por algo poderoso e doloroso. Vorticificado.
Existe essa palavra? Eu me pergunto.
Você está falando consigo mesmo, então quem liga? Eu
respondo engolindo algumas pílulas. Visto a cueca e vou
para a porta do quarto, onde um bule de café já está
esperando. Foi deixado ali por um empregado do hotel, que
sem dúvida recebeu instruções estritas para ficar fora da
minha vista.
Termino o café, me visto e sigo para o elevador de serviço
e para a entrada lateral — o gerente gentilmente me deu
chaves de acesso especial para eu evitar o desfile de
exibidos do saguão. Na calçada, sou atingido por um golpe
do ar de Nova York. É meio opressor, mas gosto que o ar
seja úmido. Me lembra do Oregon, onde a chuva cai sem
parar, e, mesmo no dia mais quente de verão, nuvens
carregadas flutuam no céu; suas sombras me lembram que o
calor do verão é passageiro e que a chuva nunca está
distante.
Em Los Angeles, onde moro agora, dificilmente chove. E o
calor nunca termina. Mas é um calor seco. As pessoas usam
essa aridez como desculpa para tudo. “Pode estar uns
quarenta e dois graus hoje”, elas se vangloriam, “mas pelo
menos é um calor seco”.
Nova York, por outro lado, tem um calor úmido; quando
chego ao estúdio, a dez quarteirões, numa área afastada na
West Fifties, meu cabelo, que mantenho escondido sob um
boné, está úmido. Tiro um cigarro do bolso e minha mão
treme quando eu acendo. Tive um leve tremor há mais ou
menos um ano. Depois de várias consultas, os médicos
disseram que não era nada além de nervosismo e me
aconselharam a tentar ioga.
Quando chego ao estúdio, Aldous está esperando do lado
de fora, debaixo do toldo. Ele olha para mim, para meu
cigarro, de volta para meu rosto. Posso ver pela forma como
está me olhando se precisa agir como o policial bonzinho ou
o malvado. Eu devo estar péssimo, porque ele opta pelo
policial bonzinho.
— Bom dia, Raio de Sol — ele diz jovialmente.
— É? O que tem de bom no dia? — Eu tento fazer soar
como uma piada.
— Tecnicamente, já é de tarde agora. Estamos atrasados.
Eu apago o cigarro. Aldous coloca uma mão gigante no
meu ombro, paradoxalmente gentil.
— Precisamos de um canal de guitarra em Sugar, só para
dar um pouco a mais para que os fãs comprem tudo de novo.
— Ele ri, balança a cabeça pelo que o negócio se tornou. —
Depois você tem um almoço com a Shuffle, e temos um
ensaio de fotos para aquele “troço” do Fashion Rocks para a
Times com o resto da banda lá pelas cinco, mais tarde uns
drinques com os caras da grana na gravadora, daí saio para o
aeroporto. Amanhã você tem um encontro rápido com o
pessoal da propaganda e do marketing. Apenas sorria e não
fale muito. Depois disso, vai sozinho até Londres.
Sozinho? Tipo o oposto de estar no seio quente de uma
família quando estamos todos juntos? Eu digo. Só que digo
isso para mim mesmo. Cada vez mais parece que a maioria
das conversas é comigo mesmo. Acho que provavelmente é
uma boa coisa.
Só que desta vez eu realmente vou estar sozinho. Aldous e
o resto da banda voam para a Inglaterra esta noite. Eu
deveria estar no mesmo voo com eles até perceber que era
sexta-feira 13, e eu disse, tipo, nem fodendo! Já estou
apavorado o suficiente com esta turnê do jeito que está,
então não vou surtar mais saindo no dia oficial da má sorte.
Assim, fiz o Aldous marcar minha passagem para o dia
seguinte. Vamos gravar um clipe em Londres e fazer muita
divulgação antes de começar a turnê, então não é que eu vá
perder um show; é só um encontro preliminar com o diretor
do nosso clipe. Não preciso ouvir a visão artística dele.
Quando começarmos a gravação, eu faço o que ele mandar.
Sigo Aldous até o estúdio e entro na sala de gravação,
onde somos apenas eu e uma fileira de guitarras. Do outro
lado do vidro estão nosso produtor, Stim, e os engenheiros
de som. Aldous se junta a eles.
— Tá, Adam — diz Stim —, mais um canal na ponte e no
refrão. Só para ficar mais meloso. Vamos mexer nos vocais
e na mixagem.
— Meloso. Entendi. — Coloco os fones e pego minha
guitarra para afinar e me aquecer. Tento não notar que,
apesar do que Aldous disse alguns minutos atrás, parece que
eu já estou solitário. Eu sozinho numa cabine à prova de
som. Não pense demais, digo a mim mesmo. É assim que
você grava em um estúdio moderno. O único problema é
que eu me senti igual há alguns anos no Garden. Lá no palco,
na frente de dezoito mil fãs, ao lado das pessoas que havia
muito tempo eram parte da minha família, eu me senti tão
sozinho como nesta cabine.
Ainda assim, poderia ser pior. Começo a tocar e meus
dedos se tornam mais ágeis. Eu me levanto do banquinho e
bato e soco minha guitarra, até ela guinchar e gritar da forma
como eu quero. Ou quase isso. Há provavelmente muito
dinheiro em guitarras nesta sala, mas nenhuma delas soa tão
bem quanto minha velha Les Paul Junior — a guitarra que
tive por anos, com a qual gravei nossos primeiros CDs,
aquela que, num surto de idiotice ou arrogância, ou sei lá o
quê, eu permiti que fosse leiloada para caridade. As
substitutas brilhantes, caras, nunca soaram ou pareceram
exatamente certas. Ainda assim, quando eu rasgo alto,
consigo me perder por um segundo ou dois.
Mas tudo termina rápido demais, então Stim e os
engenheiros me cumprimentam e me desejam sorte na turnê, e
Aldous me conduz para fora e para uma limusine, e nós
seguimos pelo SoHo, para um restaurante que os assessores
de imprensa da nossa gravadora decidiram ser um bom lugar
para nossa entrevista. Eles pensam que não serei capaz de
gritar ou dizer algo que me queime se estiver num local
público caro? Eu me lembro lá nos primeiros dias, quando
os entrevistadores tinham blogs e eram fãs e queriam
principalmente falar de rock — discutir a música — e
queriam falar com todos nós juntos. Na maioria das vezes
era uma conversa normal, com todo mundo falando ao
mesmo tempo. Naquele tempo eu não me preocupava em
frear minhas palavras. Mas agora os repórteres entrevistam a
mim e depois a banda separadamente, tentando fazer com
que um denuncie o outro.
Preciso de um cigarro antes de entrar, então Aldous e eu
ficamos do lado de fora do restaurante, no sol escaldante do
meio-dia, enquanto uma multidão de pessoas se junta e olha
para mim fingindo não olhar. É a diferença entre Nova York
e o resto do mundo. As pessoas são tão loucas por
celebridades quanto em qualquer lugar, mas os novaiorquinos
— ou pelo menos aqueles que se consideram
sofisticados e caminham pelo quarteirão do SoHo em que
estou parado agora — fingem que não ligam, mesmo olhando
através de seus óculos escuros de trezentos dólares. Depois
agem com indiferença quando alguém corre e pede um
autógrafo, como duas garotas de moletom da U Michigan
acabaram de fazer, para grande irritação de um trio de
esnobes próximos, que viram as meninas e reviraram os
olhos, me dando um olhar de solidariedade. Como se as
meninas fossem o problema.
— Precisamos arrumar um disfarce melhor para você,
Wilde Man — disse Aldous, depois que as meninas, rindo
de empolgação, se afastaram. Ele é o único que tem
permissão para me chamar assim ainda. Antes costumava ser
um apelido geral, uma brincadeira com meu sobrenome,
Wilde. Mas em determinada ocasião eu detonei um quarto de
hotel, e, depois disso, Wilde Man, “o homem selvagem”,
virou um clichê inevitável dos tabloides.
Daí, como se aproveitasse a deixa, um fotógrafo aparece.
Não se pode ficar parado na frente de um hotel de luxo que
isso acontece.
— Adam! Bryn está lá dentro? — Uma foto minha com
Bryn vale quatro vezes mais que uma minha sozinho. Mas,
depois que o primeiro flash se apaga, Aldous coloca uma
mão na frente da lente do cara e outra na frente do meu rosto.
Enquanto me conduz para dentro, ele vai me preparando.
— A repórter se chama Vanessa LeGrande. Ela não é um
desses tipos pavorosos que você odeia. É jovem. Não mais
jovem do que você, mas deve ter uns vinte e poucos, acho.
Escrevia em um blog antes de ser contratada pela Shuffle.
— Que blog? — eu interrompo. Aldous raramente me dá
fichas detalhadas sobre os repórteres a não ser que haja uma
razão.
— Não tenho certeza. Talvez Gabber.
— Ah, Al, é uma merda de um site de fofocas.
— A Shuffle não é um site de fofocas. E esta é a exclusiva
para a capa.
— Ótimo. Que seja — eu digo, empurrando a porta do
restaurante. Dentro há mesas baixas de aço e vidro e
banquinhos de couro, como um milhão de outros lugares em
que já estive. Estes restaurantes se acham demais, mas na
verdade são apenas versões mais caras, mais enfeitadas, do
McDonald’s.
— Lá está ela, na mesa do canto, a loira com mechas —
Aldous diz. — Ela é uma gata. Não que isso lhe falte. Droga,
não diga a Bryn que eu disse isso. Tá, esquece, vou estar lá
no bar.
Aldous vai ficar para a entrevista? Isso é trabalho de
assessor de imprensa, só que eu me recusei a ser escoltado
por assessores de imprensa. Devo parecer mesmo surtado.
— Está de babá? — pergunto.
— Não. Só achei que você poderia precisar de reforços.
Vanessa LeGrande é bem gata. Talvez gostosa seja um
termo mais preciso. Não importa. Posso ver pela forma
como ela lambe os lábios e joga o cabelo para trás que ela
sabe disso, e isso estraga muito do efeito. Uma tatuagem de
cobra corre pelo seu pulso, e aposto nosso disco de platina
que ela tem um carimbo de vadia. Com certeza, quando ela
procura na bolsa um gravador digital, saindo do cós de seu
jeans de cintura baixa há uma flechinha apontando para o sul.
Classuda.
— Oi, Adam — Vanessa diz, olhando para mim de forma
conspiratória, como se fôssemos velhos amigos. — Posso já
dizer que sou uma grande fã sua? Collateral damage me
ajudou a passar por um fim de namoro arrasador no último
ano da faculdade. Então, obrigada. — Ela sorri para mim.
— Hum, não tem de quê.
— E agora eu gostaria de retribuir o favor escrevendo
sobre o melhor perfil da Shooting Star que já foi visto.
Então, que tal nós irmos direto ao ponto e mergulharmos no
assunto?
Direto ao ponto? As pessoas ao menos entendem metade
da merda que sai de suas bocas? Vanessa pode estar
tentando ser abusada ou safada, ou querendo me conquistar
com sinceridade, ou me mostrar como ela é real, mas, o que
quer que ela esteja tentando, não vou cair nessa. — Claro —
é tudo o que eu digo.
Um garçom chega para anotar o pedido. Vanessa pede uma
salada, eu peço uma cerveja. Vanessa folheia seu caderno de
anotações. — Sei que não devemos falar sobre
BloodSuckerSunshine... — ela começa.
Imediatamente eu franzo a testa. É exatamente do que
devemos falar. É por isso que estou aqui. Não para sermos
amiguinhos. Não para trocar segredos. Mas porque é parte
do meu trabalho promover os álbuns da Shooting Star.
Vanessa joga charme. — Estou ouvindo há semanas, e sou
uma garota volúvel, difícil de agradar. — Ela ri. Ao longe,
escuto Aldous pigarrear. Olho para ele. Está com um sorriso
falso gigante, me fazendo sinal de positivo. Ele parece
ridículo. Eu me viro para Vanessa e me forço a sorrir de
volta. — Mas, agora que seu segundo CD saiu e seu som
mais pesado está estabelecido, acho que podemos concordar
com isso, quero escrever algo definitivo. Marcar sua
evolução de banda de emocore para os descendentes do
agita-rock.
Descendentes do agita-rock? Essa coisa de se dar
importância desconstrucionista era algo que me brochava
bem no começo. Até onde eu sei, escrevo músicas: acordes,
batidas e letras, versos, pontes e ganchos. Mas daí, conforme
a gente cresceu, as pessoas começaram a dissecar as
músicas, como um sapo na aula de biologia, até não sobrar
nada além de tripas — partes pequenas, muito menos do que
a soma.
Eu reviro os olhos levemente, mas Vanessa está focada em
suas anotações. — Eu estava ouvindo uns shows das suas
primeiras músicas. É tão pop. E tenho lido tudo sobre vocês,
cada post de blog, cada e-zine. E quase todo mundo se refere
a esse “buraco negro” da Shooting Star, mas ninguém
realmente penetra lá. Vocês tiveram seus lançamentos
independentes; foram bem; foram escalados para o primeiro
time, mas daí tem esse intervalo. Boatos de que a banda iria
se desfazer. Daí vem o Collateral damage. E pau. —
Vanessa imita uma explosão vinda de seus punhos fechados.
É um gesto dramático, mas não totalmente infundado.
Collateral damage saiu há dois anos, e, com um mês de
lançamento, o single Animate entrou nas paradas nacionais e
viralizou. Costumávamos brincar que não dava para ouvir
rádio por mais de uma hora sem que ela tocasse. Daí Bridge
explodiu, e logo o CD estava na primeira posição no iTunes,
que por sua vez fez cada loja do país ter o CD em estoque, e
logo estava tirando a Lady Gaga da primeira posição na lista
da Billboard. Por um bom tempo parecia que o álbum estava
carregado no iPod de cada pessoa com idade entre doze e
vinte e quatro. Em questão de meses, nossa banda
semiesquecida do Oregon estava na capa da revista Time
sendo considerada o “Nirvana do Novo Milênio”.
Mas nada disso é novidade. Foi tudo documentado, sem
parar, até enjoar, inclusive na Shuffle. Não tenho certeza
sobre aonde Vanessa quer chegar.
— Sabe, todo mundo parece atribuir o som mais pesado ao
fato de Gus Allen ter produzido Collateral damage.
— Certo — eu digo. — Gus é do rock.
Vanessa toma um gole de água. Posso ouvir o piercing de
sua língua estalar.
— Mas Gus não escreveu essas letras, que são a base para
todo o magnetismo. Você escreveu. Toda essa força bruta e
emoção. É como se Collateral damage fosse o álbum mais
raivoso da década.
— E pensar que estávamos indo para o mais alegre.
Vanessa olha para mim, estreita os olhos.
— Falei como elogio. Foi bem catártico para muita gente,
incluindo eu. E essa é a questão. Todo mundo sabe que
alguma coisa rolou durante seu “buraco negro”. Vai acabar
saindo, então por que esconder os fatos? A que se refere o
“efeito colateral”? — ela pergunta, fazendo aspas com os
dedos. — O que aconteceu com vocês? Com você?
Nosso garçom entrega a salada de Vanessa. Eu peço uma
segunda cerveja e não respondo à pergunta. Não digo nada.
Só mantenho meus olhos abaixados. Porque Vanessa está
certa numa coisa: nós controlamos, sim, a verdade. Nos
primeiros dias, ouvi essa pergunta o tempo todo, mas apenas
dávamos respostas vagas: levou um tempo para
encontrarmos nosso som, escrevermos nossas músicas. Mas
agora a banda é grande o suficiente para que nossa
assessoria lance uma lista de assuntos proibidos para os
repórteres: o relacionamento de Liz e Sarah, o meu com
Bryn, os antigos problemas com drogas de Mike — e o
“buraco negro” da Shooting Star. Mas Vanessa
aparentemente não recebeu o recado. Lanço um olhar para
Aldous, buscando ajuda, mas ele está mergulhado numa
conversa com o barman. Grande apoio.
— O título se refere à guerra — eu digo. — Nós já
explicamos isso antes.
— Certo — ela diz, revirando os olhos. — Por isso suas
letras são tão políticas.
Vanessa me encara com seus grandes olhos azuis. Essa é a
técnica de uma repórter: criar um silêncio desconfortável e
esperar que a gente comece a falar tudo, sem parar. Mas não
vai funcionar comigo. Posso vencer qualquer olho no olho.
Os olhos de Vanessa de repente ficam frios e duros. Ela
abruptamente coloca sua personalidade animada e sedutora
de lado e me encara com uma ambição dura. Parece faminta,
mas é um avanço porque pelo menos ela está sendo sincera.
— O que aconteceu, Adam? Sei que tem uma história aí, a
história da Shooting Star, e sou eu que vou contá-la. O que
transformou essa banda de indie pop num fenômeno do rock?
Sinto um soco duro no estômago. — A vida aconteceu. E
levou um tempo para a gente escrever coisas novas...
— Levou um tempo para você — Vanessa interrompe. —
Você escreveu os dois discos mais recentes.
Dou de ombros.
— Vamos, Adam! Collateral damage é seu disco. É sua
obra-prima. Devia ter orgulho disso. Eu sei a história por
trás disso, por trás de sua banda, e sua história também. Uma
grande mudança desse tipo, de um colaborativo quarteto
indie para uma força punk emocional levada ao estrelato... É
tudo você. Quero dizer que você sozinho estava lá no
Grammy, aceitando o prêmio pela melhor música. Qual foi a
sensação?
Uma merda. — Caso você tenha esquecido, a banda toda
ganhou como revelação. E isso faz mais de um ano.
Ela concorda. — Olha, não estou tentando diminuir
ninguém ou reabrir feridas. Só estou querendo entender a
mudança. Na música. Nas letras. Na dinâmica da banda. —
Ela me dá um olhar compreensivo. — Todos os sinais
apontam para você como o responsável por isso.
— Não há um único responsável. Nós apenas acertamos
nossa música. Acontece o tempo todo. Como Dylan indo pro
som elétrico. Como Liz Phair tornando-se comercial. Mas as
pessoas tendem a surtar quando algo diverge das
expectativas.
— Só sei que há algo mais aí — Vanessa continua,
empurrando com força a mesa contra mim. Tenho que me
proteger e empurrá-la de volta.
— Bem, você obviamente tem sua teoria, então não deixe a
verdade se intrometer.
Os olhos dela reluzem por um rápido segundo e eu
percebo que a irritei, mas então ela levanta as mãos. Suas
unhas estão roídas. — Bem, quer saber da minha teoria? —
ela fala arrastado.
Não exatamente. — Solta aí.
— Conversei com algumas pessoas que estudaram com
você.
Sinto meu corpo todo congelar, matéria macia virando
chumbo. É preciso uma concentração extrema para eu levar o
copo aos meus lábios e fingir dar um gole.
— Não sabia que você tinha estudado no mesmo colégio
de Mia Hall — ela diz levemente. — Conhece? A
violoncelista? Ela está começando um rebuliço no mundo.
Ou um alvoroço na música clássica. Talvez certa agitação.
O copo treme na minha mão. Tenho de usar a outra mão
para ajudar a baixá-lo para a mesa e evitar que vire em mim.
Todas as pessoas que realmente sabem o que aconteceu
naquela época não estão falando, eu lembro a mim mesmo.
Boatos, até os verdadeiros, são como chamas: tire o
oxigênio e eles vacilam e morrem.
— Nossa escola tinha um bom programa de arte. Era meio
um solo de cultivo para músicos — eu explico.
— Faz sentido — Vanessa diz, assentindo. — Há um vago
boato de que você e Mia foram namorados no colégio. O que
é engraçado, porque nunca li sobre isso em lugar nenhum e
certamente parece digno de nota.
Uma imagem de Mia aparece diante de meus olhos.
Dezessete anos, aqueles olhos escuros cheios de amor,
intensidade, medo, música, sexo, mágica, dor. Suas mãos
congeladas. Minhas próprias mãos congeladas agora,
agarrando um copo de água gelada.
— Seria digno de nota se fosse verdade — eu digo,
forçando a voz num tom contido. Dou outro gole na água e
faço sinal para o garçom trazer outra cerveja. É minha
terceira, a sobremesa do meu almoço líquido.
— Então não é? — ela diz, desconfiada.
— Está forçando — respondo. — Nos conhecemos por
alto da escola.
— É, não encontrei ninguém que conhecesse vocês dois
para confirmar. Mas então consegui um antigo anuário e nele
há uma foto meiga de vocês dois. Parecem mesmo um
casalzinho. O problema é que não tem nome na foto, só uma
legenda. Então, a não ser que você saiba como é a aparência
de Mia, você pode deixar passar.
Obrigado, Kim Schein: a melhor amiga de Mia, rainha do
anuário, paparazzo. Não queríamos aquela foto, mas Kim
enfiou lá sem incluir nossos nomes, só aquele apelido idiota.
— A nerd e o descolado? — Vanessa pergunta. — Vocês
até têm um apelido.
— Está usando anuários de escola como fonte? O que vem
em seguida, Wikipedia?
— Você dificilmente é uma fonte confiável. Você disse
que se conheciam “por alto”.
— Olha, a verdade é que talvez tenhamos ficado umas
semanas, bem quando essas fotos foram tiradas. Mas, ei, saí
com muitas meninas no colégio. — Dou a ela meu melhor
sorrisinho de pegador.
— Então você não a vê desde o colégio?
— Desde que ela foi para a faculdade — eu digo. Essa
parte pelo menos é verdade.
— Então por que os seus colegas de banda disseram “sem
comentários” quando perguntei sobre ela? — ela questiona,
me olhando firme.
Porque, por mais que o resto tenha dado errado com a
gente, ainda somos leais. Sobre isso. Eu me forço a falar
alto: — Porque não tem nada a ser falado. Acho que pessoas
como você gostam do aspecto sensacionalista de, você sabe,
dois músicos conhecidos da mesma escola sendo um casal.
— Pessoas como eu? — Vanessa pergunta.
Abutres. Sanguessugas. Ladrões de alma. — Repórteres,
eu digo. — Vocês gostam muito de contos de fadas.
— Bem, quem não gosta? — Vanessa diz. — Apesar de
sabermos que a vida daquela mulher não chega perto de um
conto de fadas. Ela perdeu a família toda num acidente de
carro.
Vanessa simula um tremor, como se faz quando se fala
sobre as infelicidades de alguém com quem você não tem
nada a ver, que não te atinge e nunca atingirá. Nunca bati
numa mulher na minha vida, mas por um minuto quero dar um
soco no rosto dela, dar a ela um gostinho da dor que está
descrevendo tão casualmente.
— Falando em contos de fadas, você e Bryn Shraeder vão
ter um bebê? Eu a vejo em todos os tabloides que estão de
olho em barriguinhas.
— Não — eu respondo. — Não que eu saiba. — Estou
bem certo de que Vanessa sabe que Bryn é assunto proibido,
mas, se falar sobre a gravidez de Bryn vai distraí-la, então
vamos nessa.
— Não que eu saiba? Vocês ainda estão juntos, certo?
Deus, que fome nos olhos dela. Com toda essa conversa de
escrever sobre a banda, por todos os meios investigativos
dela, Vanessa não é diferente das outras jornalistas meiaboca
e fotógrafos perseguidores, morrendo para serem os
primeiros a publicar um furo de reportagem, seja para um
nascimento: Adam e Bryn terão gêmeos? Ou uma morte:
Bryn fala para seu Wilde Man: “Acabou!”. Nenhuma das
duas é verdade, mas às vezes eu vejo ambas nas capas de
diferentes revistas de fofocas ao mesmo tempo.
Eu penso na casa em Los Angeles que eu e Bryn
dividimos. Ou em que coabitamos. Não consigo me lembrar
da última vez em que nós dois estivemos juntos por mais de
uma semana. Ela faz dois, três filmes por ano, e acabou de
abrir a própria empresa de produção. Então, entre filmar e
promover seus filmes e buscar peças para produzir e eu no
estúdio e em turnê, nós parecemos estar em calendários
opostos.
— Sim, Bryn e eu ainda estamos juntos — digo a Vanessa.
— E ela não está grávida. Ela só está naquela fase de usar
camisa velha, então todo mundo supõe que seja para
esconder a barriga. Não é.
Verdade seja dita, eu às vezes me pergunto se Bryn usa
essas camisas de propósito, para atrair os vigilantes de
barriga como forma de tentar o destino. Ela quer muito um
filho. Mesmo que publicamente Bryn tenha vinte e quatro
anos, na verdade ela tem vinte e oito, e alega que seu relógio
biológico esteja batendo e tudo o mais. Mas eu tenho vinte e
um, e nós só estamos juntos há um ano. E não me importo se
Bryn diz que tenho alma velha e já passei por uma vida toda.
Mesmo se eu tivesse quarenta e um, e Bryn e eu tivéssemos
comemorado vinte anos juntos, eu não iria querer um filho
com ela.
— Ela vai com você para a turnê?
À simples menção de uma turnê, sinto minha garganta
começar a fechar. A turnê tem sessenta e sete noites de
duração. Sessenta e sete. Eu mentalmente pego meu frasco
de pílulas, fico mais calmo sabendo que ele está lá, mas sou
esperto o suficiente para não pegar uma na frente de
Vanessa.
— Hum? — pergunto.
— Bryn vai encontrá-lo na turnê em algum momento?
Eu imagino Bryn na turnê, com seus stylists, seu instrutor
de pilates, sua mais recente dieta de comida crua. — Talvez.
— O que acha de morar em Los Angeles? — Vanessa
pergunta. — Você não parece com o pessoal de lá.
— O clima é seco — respondo.
— O quê?
— Nada. Uma piada.
— Ah. Certo. — Vanessa me olha de forma cética. Eu não
leio mais entrevistas sobre mim, mas, quando lia, palavras
como impenetrável frequentemente eram usadas. E
arrogante. É realmente como as pessoas me veem?
Por sorte, nossa hora acabou. Ela fecha o caderno e pede a
conta. Eu procuro os olhos aliviados de Aldous, para que ele
saiba que estamos encerrando.
— Foi bacana conhecer você, Adam — ela diz.
— É, você também — eu minto.
— Preciso dizer que você é um quebra-cabeça — Ela
sorri, e seus dentes reluzem num branco não natural. — Mas
gosto de quebra-cabeças. Como suas letras, todas essas
imagens pavorosas em Collateral damage. E as letras do
disco novo também são muito enigmáticas. Você sabe que
alguns críticos questionam se BloodSuckerSunshine pode se
equiparar à intensidade de Collateral damage...
Já sei o que vem. Já ouvi isso antes. É o que os repórteres
fazem. Citam a opinião de outros críticos como uma forma
duvidosa de expor as deles próprios. E sei o que ela
realmente está perguntando, mesmo que não pergunte: Qual
é a sensação de saber que a única coisa digna que você já
criou veio do pior tipo de perda?
De repente, é demais para mim. Bryn e os vigias da
barriga. Vanessa com meu anuário escolar. A ideia de que
nada é sagrado. Tudo é ração para animais. Que minha vida
pertence a qualquer um menos a mim. Sessenta e sete noites.
Sessenta e sete, sessenta e sete. Eu empurro a mesa com
força para que os copos de água e cerveja caiam no colo
dela.
— Que p...?
— A entrevista terminou — eu rosno.
— Eu sei. Por que está surtando comigo?
— Porque você não é nada além de um urubu! Isso não tem
nada a ver com música. É mexerico, bisbilhotice.
Os olhos de Vanessa se agitam enquanto ela mexe no
gravador. Antes de ela ter chance de ligá-lo novamente, eu o
pego e bato com força na mesa, quebrando-o, então despejo
um copo-d’água em cima dele só para completar. Minha mão
está tremendo e meu coração bate forte, e eu sinto o início de
um ataque de pânico, do tipo que me faz ter certeza de que
estou prestes a morrer.
— O que você fez? — Vanessa grita. — Não tenho um
gravador reserva.
— Que bom.
— Como vou escrever minha matéria agora?
— Chama isso de matéria?
— É. Algumas pessoas precisam trabalhar para ganhar a
vida, seu mimadinho cuzão...
— Adam! — Aldous está do meu lado, colocando três
notas de cem na mesa. — Para comprar um novo — ele diz a
Vanessa, antes de me conduzir para fora do restaurante e
para um táxi. Ele joga outra nota de cem para o motorista
depois de impedir que eu acenda um cigarro. Aldous faz uma
busca no meu bolso e pega o frasco, tira uma pílula e diz: —
Abra a boca — como uma mãe superprotetora.
Ele espera até nos afastarmos do hotel, até eu ter tragado
dois cigarros continuamente e engolido outra pílula para
ansiedade. — O que aconteceu lá?
Conto a ele. Sua pergunta sobre o “buraco negro”. Bryn.
Mia.
— Não se preocupe. Podemos ligar para a Shuffle.
Ameaçar tirar a exclusiva se eles não colocarem outra
repórter na matéria. E talvez isso entre nos tabloides ou nas
fofocas por alguns dias, mas não é lá uma grande história.
Vai desaparecer.
Aldous está falando calmamente, como ei, it’s only rock
’n’ roll , mas posso ler a preocupação em seus olhos.
— Não posso, Aldous.
— Não se preocupe com isso. Não precisa. É só uma
matéria. Dá para cuidar disso.
— Não é só isso. Não consigo. Nada disso.
Aldous, que eu acho que não dormiu uma noite inteira
desde que fez turnê com o Aerosmith, se permite parecer
exausto por alguns segundos. Então ele retorna para o mundo
empresarial. — Você só teve uma crise pré-tour. Acontece
com os melhores — ele me assegura. — Quando cair na
estrada, na frente da multidão, começar a sentir o amor, a
adrenalina, a música, você vai se encher de energia. Quero
dizer, diabos, você vai fritar com certeza, mas fritar de
alegria. E, chegando novembro, quando acabar, você pode
“morgar” numa ilha onde ninguém sabe quem você é, onde
ninguém dá a mínima para a Shooting Star. Ou o selvagem
Adam Wilde.
Novembro? Estamos em agosto agora. São três meses. E a
turnê tem sessenta e sete noites. Sessenta e sete. Eu repito na
minha cabeça como um mantra, só que o efeito é o oposto de
um mantra. Me faz querer arrancar punhados de cabelo.
Como dizer a Aldous, como contar a qualquer deles que a
música, a adrenalina, o amor, todas as coisas que aliviam
quão difícil se tornou, tudo se foi? Só sobrou o redemoinho.
E estou bem no meio dele.
Meu corpo todo está tremendo. Estou surtando. Um dia
pode ter apenas vinte e quatro horas, mas às vezes passar
por um parece tão impossível quanto escalar o Everest.

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